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Porque “não vá o Diabo tecê-las” são milhares que se deslocam a S. Bartolomeu do Mar para o afugentar. Muitos deles vão com o propósito de levar os filhos ao “banho santo”. Mas como o mal não escolhe idades, e o Santo haveria de proteger todos, viu-se adultos a mergulharem no mar em busca de proteção.

Diz a tradição que o ritual, a ser cumprido, faz com que as crianças dêem três voltas à igreja com um galo preto, passem por debaixo do andor e, depois, sejam levadas ao mar para serem mergulhadas nas ondas em número ímpar. Talvez porque o 666 seja o número do diabo e é composto só por pares.

“O primeiro ano que temos registo deste culto é o de 1566”, revelou Paula Cepa, uma das co-autoras de uma trilogia que aborda toda a temática de S. Bartolomeu dos Mar. O Santo “era advogado das crianças e estava ligado a muitas doenças como a epilepsia que, na altura, não tinha qualquer medicação”. Assim as crianças tinham convulsões que eram atribuídas ao demónio. Por isso se dizia que "o Diabo andava à solta em S. Bartolomeu do Mar”, referiu Paula Cepa.

E porque o Diabo era “coisa” negra, no ritual começou-se a usar o galo preto, que, atualmente, também pode ser galinha e pode ter outra cor. O Santo protegerá na mesma. “É uma mistura entre a fé e o profano”, considerou Paula Cepa. Há a parte da fé e a dos mitos com o Diabo que seria, também, responsável pela gaguez e o medo, entre outros males.

Quando nasce uma ave preta as pessoas da freguesia “guardam-na sempre para este dia, mas como são mais raras, quando não conseguem trazem de outras cores”.  Antigamente cada pessoa trazia a sua galinha, mas “com o passar do tempo tornou-se mais difícil e disponibilizamos o aluguer”, revelou a também elemento da comissão organizadora.

O custo do aluguer é de 10 euros a que se somará mais alguns para dar ao banheiro que mergulhará as crianças.

Vestido a rigor, Júlio Oliveira, é um dos dois banheiros que estão na praia preparados para ajudar as crianças na sua cura, embora muitos pais chamem a si a responsabilidade de efetivar o ritual. “Estou aqui há três anos. Existiam alguns mais velhos que agora a saúde não lhes permite estar aqui e decidi dar continuidade à tradição”, disse. Maria, a outra banheira, esteve fora por alguns anos, mas voltou àquele mar que conhece. Ambos são da terra e ambos estavam já, ao início da manhã, a darem os “primeiros banhos santos”. Com o passar das horas seriam muitas mais as crianças que haveriam de mergulhar na água que “até não estava muito fria”. Teria sido S. Bartolomeu a aquecer as águas para proteger as crianças do frio? Se houver crença e fé “tudo é possível” como disse Júlio Oliveira, com os pés embalados pelas ondas que rebentavam serenamente na costa.

Margarida mergulhou três vezes no mar e confirmou: “a água não está fria!”. Veio acompanhada pelos pais. A mãe, Alexandrina, revelou que estava ali por “terem três filhos e nunca terem ido” a S. Bartolomeu. Dois deles iriam fazer o ritual. De fora ficava “apenas o pequenino que ainda é bebé”, mas que “se Deus quiser” haverá de ir também.

Muitos estavam ainda a chegar ao Adro da Igreja. Desde as primeiras horas que já se viam crianças por ali mas, ao longo da manhã, o número ia engrossando, bem como aqueles que do Diabo não têm medo e apenas se quedam a assistir. “Está uma afluência muito grande. Ontem o galinheiro tinha metade das galinhas”, constatou Paula Cepa, agarrada ao livro da trilogia sobre o santo, no qual colaborou e cujo primeiro volume está já esgotado, circulando agora “pelos meios académicos”.

“Há um crescimento. Talvez a pandemia tenha assustado as pessoas e agora se virem mais para fé”, concordou com a colega, Manuel Laranjeira, que também pertence à comissão.

“Temos de acreditar pois senão o que éramos nós?” questionou, Sónia que trouxe o filho de Barcelos para “ficar mais protegido do diabo e dessas coisas”. Não há palavras para "descrever a fé”, disse por seu turno Maria Pinheiro, vinda de Famalicão. Também ela trazia o filho, que com três anos iria enfrentar o esconjurado.

A pequena Ema segurava já a galinha: “está calminha”.  Nunca tinha vindo e iria passar por baixo do andor e depois iria à água. “Não sei quantas vezes vou mergulhar”, revelou a sua única dúvida, debaixo do olhar caridoso do pai. “É uma fé”, disse este.

Alguns por ali cumprem todos os passos exigidos mais pela tradição, pois não há nada para curar nem demónios para afugentar. “Já vim aqui dar os mergulhos com o meu padrinho”, disse Marinho que, assim, com 35 anos, “já afastou” o Diabo.

“Os meus pais trouxeram-me quando eu era criança e quero cumprir com a minha filha. Não sofre de nada, mas do diabo vai se livrar”, disse, por seu turno, Isabel acompanhada do marido que nunca ali tinha ido. Sendo de Guimarães os seus “males” tinham sido curados no “Espirito Santo da Trofa”. A pequenita, essa, estava mais encantada com a galinha que “era bonita”. Fazendo-lhe festas na cabeça disse: “Vou andar com ela debaixo do braço”.

Com 73 anos, Aires Carneiro, vai todos os anos pela “tradição” da festa. “Se me fizer bem, faz bem”, disse o emigrante que veio de França para passar as férias na sua terra. Como “marense” já era conhecido e este ano decidiu “meter” com o banheiro para que fosse ele a “dar-lhe o banho santo”.

No meio da multidão, que enche aquela zona freguesia, muitos há que vão ali suplicar a S. Bartolomeu para uma cura necessária.

“O meu filho é autista e venho aqui todos os anos desde que ele tem três. Tenho crença que um dia aconteça o milagre”. Um milagre que seria o de pôr o filho a falar. “Ele diz algumas palavras só mas há que ter fé”, disse Vera, vinda da Trofa, enquanto enxaguava o filho com uma toalha. “Portaste-te muito bem na água”, disse-lhe com um sorriso maternal.

Também com um filho autista, António Silva, de Famalicão, acabara de alugar uma galinha. “A necessidade obriga-me a trazê-lo”, justificou. “É uma questão de muita fé”, disse, ainda, o homem que já tinha mergulhado no mar trazido pelos pais.

De Fafe, Fernanda, foi a S. Bartolomeu do Mar pela primeira vez para “ver se o santo tomava conta dela” que “bem precisa para ver se a vida corre melhor. É preciso ter fé”.  Sofria de “um mal do ombro” e acreditava que o Santo ajudava todas as pessoas. “É para toda a gente, para os novos e para os mais velhos”.

E se é para todos então Ana Isabel e Maria Conceição estavam no lugar certo. “Estamos a fazer uma promessa pelo meu cunhado que está doente. Trouxemos o galo que, coitadinho, nunca se viu noutra”.

Mas se há males do corpo, há males do “espírito” que como, é sabido, S. Bartolomeu trata. O medo é um deles. Por isso Glória, com 47 anos, e Mariana, com 19, estavam ali para serem curadas. “Temos sempre medo de tudo” disseram tia e sobrinha.

Já os medos do pequeno Dinis revelam-se à noite. Os pais trouxeram uma galinha “que se portou bem na viagem” para cumprir uma “promessa feita para o menino”. São “ritos antigos e não custa nada cumprir. Mal não faz e não vejo em que possa piorar”, disse Xavier, o pai de Dinis que ali, pelo menos, não mostrava medo à temperatura da água: “não tenho frio”, assegurou. Iriam depois embora, mas a galinha ficaria pois era parte da promessa.

Milhares enchiam a estreita avenida que liga a igreja ao mar. É assim todos os anos.

Indiferente ao ambiente, uma jovem chorava. Era segurada por duas mulheres, provavelmente familiares que lentamente a “arrastavam” para dentro da igreja. A jovem fincava os pés tentando evitar a entrada.

É assim todos os anos. O diabo anda à solta em S. Bartolomeu do Mar.

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